Reflexões sobre saúde mental e o filme Coringa.

Após finalmente ter assistido ao badalado filme do Coringa, tenho que dizer que realmente adorei! Adorei porque é um filme denso, bem dirigido, bem interpretado, com boa trilha sonora e com uma história que abre margens para muitas discussões. Não quero falar da parte técnica do filme e nem dar uma interpretação fechada.

Quero apenas propor um diálogo sobre filme em relação ao campo da saúde mental e trazer a minha visão sobre o assunto. Saúde mental, ainda que seja algo que, plenamente, não exista, depende da interconexão entre vários fatores. Em especial o meio social, o meio familiar, as experiências precoces, a genética, a nutrição, agentes biológicos, estrutura de personalidade, religiosidade, integração etc. Trago alguns recortes e pitacos sobre alguns desses temas mostrados no filme.


O meio social

Gotham representa uma grande cidade em meio a um caos social. O liberalismo econômico quando fecha os olhos ao social impossibilita aos pobres qualquer chance de dignidade, inclusive no acesso à saúde.

Arthur Fleck, que já foi diagnosticado e medicado anteriormente só tem acesso a uma assistente social que faz perguntas mas não escuta. Sua voz não tem valor para a sociedade e nem mesmo para quem deveria estar ali para ajudar. Ele pede para que ela fale para o médico mudar a dose do remédio, não é ouvido. Fala sobre suas angústias, não é ouvido. A classe baixa não tem importância e nem dignidade, lixeiros estão em greve e os ratos mutantes representam a dimensão desse caos urbano. Arthur Fleck tem um subemprego e não é respeitado por colegas e nem pelo chefe e ainda é vítima de abusos nas ruas de Gotham.

 Não difícil de compreender empaticamente o desconforto, a angústia gerada por tal situação.

O meio familiar.

 No desenvolvimento da personalidade, o meio familiar e as experiências precoces têm papel essencial. Aqui temos um personagem que cresceu numa família desestruturada. Uma mãe doente -delirante- e um padastro abusador. Não há modelo a ser seguido, não há ponto de equilíbrio ou de apoio. A incongruência entre os risos e o contexto fazem a mãe não o compreendê-lo. O filho ri quando é espancado, "sempre foi uma criança feliz e risonha".

Arthur Fleck parece nunca ter recebido afeto e seu vínculo afetivo com o outro também é inexistente. Sua mãe, ponto único de apoio, se mostra um apoio débil e caótico. Arthur Fleck não tem referência , tenta buscar sentido naquilo que não passa de um delírio da mãe e ele não consegue separar o que é real e o que não é em sua própria história.

Reconhecimento O ser humano é um animal social . Somente com a interação e cooperação somos capazes de nos sobressairmos como espécie. A linguagem, as histórias e afeto nos unem, ainda que também nos separem. No jogo de trocas que possibilitam a coesão social, a criação de mitos e a identificação com figuras de poder (familiares, professores, sacerdotes, políticos etc) além da necessidade de reconhecimento estão sempre presentes. O reconhecimento social, seja no meio familiar, escolar, laboral, midiático mostra-se um fator de relevância maior e é interessante notar que a única figura masculina com a qual ele se identifica é o a do apresentador Murray Franklin (Robert De Niro). Arthur Fleck, que é representado como um dejeto, um excluído da sociedade, fantasia o reconhecimento através desse apresentador. Esse desejo de tocar o outro torna-se uma fantasia que aplaca a angústia existencial de ser um excluído.

O biológico.

Sobre isso não temos muitos dados. Vi algumas hipóteses sendo publicadas. Meu amigo Sávio Teixeira (@savioteixeira) levantou a hipótese de Arthur Fleck ter tido lesões cerebrais devido aos espancamentos sofridos na infância e por isso ter um "transtorno mental orgânico". Fato é que existe uma condição neurológica chamada 'afeto pseudobulbar' na qual a pessoa tem justamente esse tipo de risos imotivados. O afeto pseudobulbar pode advir de uma série de doenças, dentre elas como sequela de traumatismo crânio encefálico.

Há muitas lacunas para detalhar sua condição (ainda bem, seria chato demais transformar uma obra de arte numa lista de sintomas médicos), não sabemos se ele não vê graça nas piadas por não entendê-las (intelectualmente falando) ou por ter alguma desordem de ordem afetiva ou ainda um pensamento muito concreto. Em resumo, não sei.

O nascimento do Coringa.

 Claramente o momento chave do filme onde a tal transformação ocorre é no assassinato dentro do trem. Acoado e agredido ele se defende atirando. No entanto, não é algo feito simplesmente no calor da emoção e de forma impulsiva. Ele persegue o terceiro como que em um ato de vingança. Passado o perigo não já arrependimento nem dor, há um estado de júbilo. Tudo aquilo que estava entalado na garganta foi posto pra fora. Cansado de ser humilhado e de engolir tudo aquilo lhe era imposto (limites inclusive), ele se liberta. Aqui trago uma fala do colega psicanalista Cristiano Pimenta (@criatiano_pimenta_) sobre o filme: ele se transforma naquilo que ele já é.

 O destino finalmente se fecha quando aquele lixo, nunca antes reconhecido, torna-se admirável ao olhos da população cansada de ser dejeto. A partir daí, sua mãe é um entrave e a única forma de sua máscara cair (ou de uma nova máscara surgir) é eliminando a mãe e eliminando Murray Franklin que representa sua antiga vontade de ser admirado por aquilo que ele nunca fora. Sem essas amarras e sem os medicamentos que o continham para que se adaptasse a comunidade que o excluía, o Coringa está livre para buscar o que lhe dá sentido.

Murilo Ferreira Caetano

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